Um iraniano em Paris

Enquanto isto, em um bistrô em Paris…

Após saborear um belo boeuf bourguignon, tomar dois chopes e traçar um sorvete com chantily, amêndoas e tudo que um cristão tem direito, resolvo voltar a flanar no Champs Élysées para fazer a digestão.

Subo e desço a famosíssima avenida e de repente, vejo o chamado, a tentação: um restaurante iraniano. No prédio do consulado iraniano. Ao lado da Air Iran.

Pronto. Já era. Coço a cabeça, remôo as idéias, mas no fundo já sei que vou entrar. Duas horas depois de ter almoçado, vou almoçar de novo. Andei mais um tempinho, só para ter uma justificativa moral para mim mesmo: não, não vou comer de novo duas horas depois, e sim duas horas e dez minutos depois. Ah, bom.

Noto que este é o único restaurante em toda a avenida que não tem mesas na calçada. Entro, subo a escada deserta e vejo um salão com as mesas vazias, exceto um grupo de franco-iranianos numa mesa, que parecem ser habitués do local. Começo a me sentir um estranho no ninho. Será que o restaurante é uma fachada para um centro de recrutamento do Ahmadinejad? Vou ser dopado e acordar num campo de treinamento terrorista nos cafundós do Irã? Ou será que o lugar é uma cilada da CIA, um mero disfarce para identificar os freqüentadores e cruzar seus dados biométricos com os de terroristas procurados? Haverá um centro hi-tech de agentes atrás daquele espelho no fundo do salão? Vou acabar preso e incomunicável para sempre em Guantánamo? Que que eu fui inventar…

Vem o simpático dono e me interrompe no meio dos meus devaneios paranóicos. Peço um kebab com arroz de açafrão. Volto a olhar para o espelho, tem câmeras ali, eu sei. Peço uma coca-cola. Assim agrado gregos e troianos. Ou americanos e iranianos. Não contavam com a minha astúcia.

Disfarço e tiro uma foto do lugar. Danou-se, agora ficou comprovado que eu sou de alguma contra-espionagem. A essa altura, já estou devidamente registrado em todos os sistemas de todas as agências do mundo. Não tenho mais currículo, tenho folha corrida. Haverá uma seção do Wikileaks só para mim, num futuro próximo.

Vem o prato. Saboreio-o. Não tão rápido que demonstre medo, não tão devagar que pareça desafiador. Razoável. Chegam mais comensais, pago a conta e retiro-me. Saio discretamente.

Misturo-me à multidão, como um parisiense qualquer. Pego o metrô, sem olhar para trás.

Chego ao hotel e contato um número através de uma linha segura e criptografada: missão cumprida.

Esse post foi publicado em Comida, França, Paris, Viagens e marcado , , , , , , , . Guardar link permanente.

5 respostas para Um iraniano em Paris

  1. Deise disse:

    Hahahah! Adorei! É pra isso que servem as viagens…pra comer!hehe

  2. Arthur, só você mesmo para transformar um (segundo) almoço em uma história dessas! 😉

  3. Marcie disse:

    Agora, dançou. Não mais poderemos ser vistos juntos, tenho muito medo de, por associação, virar inimiga e entrar pra tal da no-fly list…já pensou?!?!? 😆

  4. Juli C. Borsa disse:

    Hahaha, muito bom! Quando viajo fico sempre com a eterna impressão de que estou ‘fazendo algo errado’, hehe.
    Por falar em kebab, os ‘iranianos-parisienses’ são muito bons. Comi um no St Michel que nunca mais esqueci… muito menos meu pai, que mordeu um caco de vidro que estava misturado naquela muvuca de ingredientes… Vidros à parte, o negócio tava muito gostoso!

    • Deise, nenhuma viagem é completa sem gastronomia!
      Camila, é o meu lado escritor de pulp fiction. Sabia que tem um restaurante iraniano em BH (Amigos do Rei)?
      Marcie, eu já devo ter entrado na no-fly list. Não poderei ir a NY 😦
      Juli, caco de vidro é complicado. Qual é o PROCON francês?
      Valeu!

Deixe um comentário